Certo dia
Aqui está uma história que me pediram para escrever e eu não resisti:
"Embora possa parecer que não, há sempre uma altura na vida que todos nos questionamos sobre onde estarão os nossos amigos. Costuma
dizer-se que estes são para as ocasiões, mas o certo é que diversas vezes parecemos necessitar deles para nos apoiarem e não encontramos nada mais do que um lugar vazio.
Um certo dia acordei e fiquei deitado na cama de olhos bem abertos e fixos num qualquer ponto na parede, a pensar no que sou, o que faço e em quem tenho de importante na minha vida.
Talvez nunca tenha pensado nisto profundamente, ou simplesmente seja quase um cliché refletir sobre estas questões, um tudo-nada filosóficas, de vez em quando.
Como jovem que sou, tento ter esperança neste lugar que me apresentaram como sendo o mundo onde teria que viver, contudo vou constatando
ao longo do meu percurso, que a diferença entre o que vejo e um mundo melhor, parte de mim, da minha iniciativa – aliás, se cada um tomasse as rédeas para construir um sítio melhor para se viver, desencadear-se-ia uma ação conjunta sem precedentes, que levaria a uma evolução nunca antes vista, sequer imaginada.
Aqui, portanto, entra a importância dos amigos e das relações pessoais.
Ao contrário do que muitos podem pensar a amizade não se valoriza pelo tempo a que existe, ou pela quantidade de coisas que fazemos em prol do bem-estar do nosso amigo: quando se quantifica os sentimentos eles já perderam o seu valor. Algo que ninguém devia esquecer.
Sem dúvida de que eu sou apologista de que amigos há muito poucos, mas amiúde, dou comigo a pensar se não profiro esta frase por “exigir” demais
dos outros… Afinal nós procuramos amigos ou a perfeição que não possuímos?
Quando um amigo nosso faz algo errado (apesar de já ter feito imensas coisas certas), somos diversas vezes os primeiros a apontar-lhe o
dedo…
Se por algum motivo nos mente, apesar de ter dito milhões de verdades até esse momento, rotulamo-lo de mentiroso e depois a relação nunca mais fica igual…
Chegamos até ao ponto de sermos hipócritas a um nível tal, que consideramos como uma das nossas virtudes ser “amigo do nosso amigo”! Se somos amigos de quem é nosso amigo, podemos considerar isso uma virtude? Não, simplesmente estamos a retribuir a amizade que outra pessoa nos oferece, o que até faz transparecer que estamos a fazer muito pouco…
Estava eu de tal forma absorto nestes pensamentos e questões, que me assustei quando ouvi um barulho: era o maldito telemóvel a tocar.
Primeiro pensei em não atender, mas quando vi que era o meu chefe achei melhor fazê-lo, não fosse o homem enervar-se seriamente. (Peço desde já desculpas se no início vos fiz pensar que era um jovem saído da adolescência, apesar de às vezes parecer isso, sou na verdade um homem de 35
anos mas muito jovem de espírito, acreditem!).
Graça de Deus ou seja o que for, o certo é que o meu chefe desligou a chamada: “Melhor para mim”, pensei.
Fico sinceramente irritado quando me incomodam do trabalho ao fim-de-semana – já não chega ter um contrato a termo, e um salário que é uma miséria ainda tem que se fazer horas extraordinárias- que trabalho fabuloso que é o meu!
Quando pensava que já não teria mais nada a incomodar o tempo que destinei para as minhas questões filosóficas, eis que tocam à
campainha. A primeira coisa que pensei foi: “É a vizinha do lado a perguntar se lhe posso emprestar um bocadinho de açúcar, portanto, não vou abrir!” Todavia comecei a ouvir a voz de um amigo meu- perdão, do meu melhor amigo- a chamar por mim.
Apressei-me a chegar até à porta e fui desde logo interpelado pelo meu amigo:
- Então rapaz, ainda na cama a estas horas? Se trinta e cinco anos não chegam para ter juízo, então não sei quando vais assentar miúdo!
- Deixa-te lá disso Gervásio, entra e senta-te ali no sofá…
O meu amigo corou um pouco. Nunca gostou do nome Gervásio, por isso lhe chamávamos de “Gé” mas naquele momento, e sem saber como, aquela
palavra saiu-me sem que eu tivesse conseguido sequer pensar nela. Mas ele não se ofenderia- há tantas coisas no mundo com que nos podemos ofender, que uma pequena lacuna de um amigo não entra nesse grupo.
Contudo, e para grande espanto meu, o Gé recusou o convite:
- Nem penses… Com um dia lindo destes vamos tomar um café à esplanada ali na esquina e aproveito para comprar tabaco que ando com o maço
vazio.
- Não me apetecia nada sair de casa…
- Comigo não há apetites pá, arranja-te rápido que não tenho a vida toda para esperar por ti!
Sorri.
O Gé sabia sempre como fazer-me sorrir: dizia a coisa certa na hora certa, da forma que só ele sabia; deste modo, imensas vezes me convencia as fazer coisas, que se fosse outra qualquer criatura a lançar-me o convite eu nunca aceitaria.
Quando cheguei à sala já pronto para sair, olhou-me com um sorriso e exclamou:
- Finalmente! Tanto tempo para isso - bateu-me nas costas-Vamos lá então…
Enquanto saía de casa com o meu melhor amigo, pensava para comigo que já havia encontrado a resposta a todas as minhas questões. Ri-me até da minha inocência ao refletir sobre tais items, mas o certo é que o valor da amizade caminhava ali ao meu lado, ansioso por ir tomar um café e comprar um maço de Marlboro.
Às vezes não precisamos de grandes gestos para entendermos o valor de uma amizade: ser a única pessoa capaz de nos levantar da cama e tirar
de casa, chega perfeitamente!"
(História totalmente fictícia da autoria de Daniela Leal).
Autoria e outros dados (tags, etc)
A uns sapatos do fim...
Joana Castro Vasconcelos era seu nome – aliás, usava-o quase como se fosse um título – “Menina Vasconcelos” aqui, “Menina Vasconcelos” ali…
Tinha sempre tudo o que desejava, mas todos os dias conseguia ter desejos novos: eternamente insatisfeita aquela menininha!
Com um curso que já deveria ter sido acabado há mais de cinco anos, e um lugar já garantido na empresa da família… Garantido como quem
diz, dado que nunca poria lá os pés.
Os seus dias eram passados em centros comerciais, a fazer compras e mais compras, a conhecer pessoas, com quem nunca conseguia travar verdadeiras amizades, tal era o seu feitio mesquinho e infantil.
Joana era daquelas pessoas que nos fazem pensar se o Homem realmente já evoluiu suficientemente até ao ponto de ser humano – sim, é
verdade – de ser humano.
Um ser humano que se preze, por muito egoísta que possa ser, olha sempre para o lado e percebe que tem que dar a mão a quem precisa … Mas
Joana não. Sinceramente penso que ela nunca soube o que era amar, ser amada, ser amiga, dar e dar-se.
Estão a ver aquelas prendas que nos oferecem com um embrulho muito bonito, um laço gigante, e quando abrimos é a maior decepção de sempre?
Isso era a Joana.
Sim, era.
Conhecida pelo seu gosto desenfreado de fazer compras por valores astronómicos para a maioria dos comuns mortais, Joana um dia decidiu
que teria que fazer uns sapatos à sua medida: não teve meias medidas!
Encomendou os ditos sapatos a um estilista, e logo no dia da prova iria lançar um boato na Imprensa para todos poderem apreciar o esplendor
da “Menina Vasconcelos”.
No dia em que finalmente saiu à rua com os sapatos, passou por um mendigo na berma da estrada que lhe disse:
- Dá-me esses sapatos.
-Como? – inquiriu Joana.
-Dá-me esses sapatos.
- O senhor está doido, eu não lhe dou sapatos nenhuns!
- Tu estás vestida e bem calçada, eu sou pobre, roto, morro de frio e de fome. Que diferença fará ficares sem esses sapatos?
-Olhe em primeiro lugar o senhor não me conhece de lado nenhum, por isso não me trata por tu. Em segundo lugar estes sapatos custaram-me os olhos da cara.
-E a minha vida? Tens noção de quanto custa a minha vida? De quanto custa qualquer vida humana? De quanto custa a tua vida?
-Olhe, estes sapatos nem sequer são de homem… Não percebo essa sua insistência ridícula – rematou Joana.
-Todos temos direitos a ter caprichos – até Deus os tem! Seja capricho ou não, o certo é que tu tens tudo e eu nada. Isso para ti é uma insignificância, pena que esse teu egocentrismo desmedido não te faça ver o que estás a perder na vida.
-Para quem é mendigo parece falar muito bem – disse Joana sarcástica – O que é certo, é que eu não tenho tempo a perder. Um minuto na
minha vida quer dizer muito. Tempo é dinheiro, e eu não vou desperdiçar nem uma coisa, nem outra consigo.
-Mais vale perder um minuto na vida do que a vida num minuto– advertiu-a o mendigo.
Joana foi desvairada para casa.
Como podia aquele homem, sujo, imundo, velho, que nada sabia da sua vida inquiri-la daquela forma?
Quem julgava ele ser? Um homem sozinho, derrotado pela vida, derrotado por todos; um homem que era ignorado, maltratado, olhado de lado… Se
calhar havia dias que nem comia, embebedava-se com vinho rasco que um ou outro sujeito lhe oferecia, cheirava mal, fedia até… Podia ele ter alguma
legitimidade em dizer fosse o que fosse à “Menina Vasconcelos”?
Ao atravessar a estrada para o local onde o seu carro estava estacionado, Joana ia tanto absorta nos seus pensamentos, que não reparou no
carro que vinha a alta velocidade.
O veículo bem tentou travar, mas já era tarde.
Joana jazia no chão, a fitar a vida agora perdida.
Ainda olhou de relance os seus sapatos… Os seus imaculados sapatos.
Como a vida é irónica: as pessoas vão, e as coisas ficam.
Fará alguma diferença para quem, como Joana, sempre valorizou as coisas e desprezou as pessoas?
Se houve ou não arrependimento foi tarde demais. Por vezes, a vida prega certas rasteiras com as quais ninguém conta, e que lá bem no fundo
tinham a sua razão de ser, mesmo que duras.
A “Menina Vasconcelos” que o diga.
(Produzido para a Fábrica de Histórias por Daniela Leal)