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A uns sapatos do fim...

Quarta-feira, 25.01.12

Joana Castro Vasconcelos era seu nome – aliás, usava-o quase como se fosse um título – “Menina Vasconcelos” aqui, “Menina Vasconcelos” ali…

Tinha sempre tudo o que desejava, mas todos os dias conseguia ter desejos novos: eternamente insatisfeita aquela menininha!

Com um curso que já deveria ter sido acabado há mais de cinco anos, e um lugar já garantido na empresa da família… Garantido como quem
diz, dado que nunca poria lá os pés.

 

Os seus dias eram passados em centros comerciais, a fazer compras e mais compras, a conhecer pessoas, com quem nunca conseguia travar verdadeiras amizades, tal era o seu feitio mesquinho e infantil.

 

Joana era daquelas pessoas que nos fazem pensar se o Homem realmente já evoluiu suficientemente até ao ponto de ser humano – sim, é
verdade – de ser humano.

Um ser humano que se preze, por muito egoísta que possa ser, olha sempre para o lado e percebe que tem que dar a mão a quem precisa … Mas
Joana não. Sinceramente penso que ela nunca soube o que era amar, ser amada, ser amiga, dar e dar-se.

 

Estão a ver aquelas prendas que nos oferecem com um embrulho muito bonito, um laço gigante, e quando abrimos é a maior decepção de sempre?
Isso era a Joana.

 

Sim, era.

 

Conhecida pelo seu gosto desenfreado de fazer compras por valores astronómicos para a maioria dos comuns mortais, Joana um dia decidiu
que teria que fazer uns sapatos à sua medida: não teve meias medidas!

Encomendou os ditos sapatos a um estilista, e logo no dia da prova iria lançar um boato na Imprensa para todos poderem apreciar o esplendor
da “Menina Vasconcelos”.

No dia em que finalmente saiu à rua com os sapatos, passou  por um mendigo na berma da estrada que lhe disse:

 

- Dá-me esses sapatos.

-Como? – inquiriu Joana.

-Dá-me esses sapatos.

- O senhor está doido, eu não lhe dou sapatos nenhuns!

- Tu estás vestida e bem calçada, eu sou pobre, roto, morro de frio e de fome. Que diferença fará ficares sem esses sapatos?

 

-Olhe em primeiro lugar o senhor não me conhece de lado nenhum, por isso não me trata por tu. Em segundo lugar estes sapatos custaram-me os olhos da cara.

-E a minha vida? Tens noção de quanto custa a minha vida? De quanto custa qualquer vida humana? De quanto custa a tua vida?

-Olhe, estes sapatos nem sequer são de homem… Não percebo essa sua insistência ridícula – rematou Joana.

-Todos temos direitos a ter caprichos – até Deus os tem! Seja capricho ou não, o certo é que tu tens tudo e eu nada. Isso para ti é uma insignificância, pena que esse teu egocentrismo desmedido não te faça ver o que estás a perder na vida.

-Para quem é mendigo parece falar muito bem – disse Joana sarcástica – O que é certo, é que eu não tenho tempo a perder. Um minuto na
minha vida quer dizer muito. Tempo é dinheiro, e eu não vou desperdiçar nem uma coisa, nem outra consigo.

-Mais vale perder um minuto na vida do que a vida num minuto– advertiu-a o mendigo.

 

Joana foi desvairada para casa.

 

Como podia aquele homem, sujo, imundo, velho, que nada sabia da sua vida inquiri-la daquela forma?

Quem julgava ele ser? Um homem sozinho, derrotado pela vida, derrotado por todos; um homem que era ignorado, maltratado, olhado de lado… Se
calhar havia dias que nem comia, embebedava-se com vinho rasco que um ou outro sujeito lhe oferecia, cheirava mal, fedia até… Podia ele ter alguma
legitimidade em dizer fosse o que fosse à “Menina Vasconcelos”?

 

Ao atravessar a estrada para o local onde o seu carro estava estacionado, Joana ia tanto absorta nos seus pensamentos, que não reparou no
carro que vinha a alta velocidade.

O veículo bem tentou travar, mas já era tarde.

 

Joana jazia no chão, a fitar a vida agora perdida.

 

Ainda olhou de relance os seus sapatos… Os seus imaculados sapatos.

 

Como a vida é irónica: as pessoas vão, e as coisas ficam.

Fará alguma diferença para quem, como Joana, sempre valorizou as coisas e desprezou as pessoas?

Se houve ou não arrependimento foi tarde demais. Por vezes, a vida prega certas rasteiras com as quais ninguém conta, e que lá bem no fundo
tinham a sua razão de ser, mesmo que duras.

 

 

A “Menina Vasconcelos” que o diga.

 

 

 

(Produzido para a Fábrica de Histórias por Daniela Leal)

 

 

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publicado por CoisasDeTudo às 20:40





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